Wilgefortis, a Santa Barbada ou a santa de muitos nomes?

Oi pessoal,

Vocês já ouviram falar em Santa Wilgefortis? Sabiam que existe uma santa barbada? E que foi crucificada? Pois é, eu também não tinha nem ideia que ela existia e a descobri completamente por acaso. Estava lendo alguns blogs para minha próxima viagem quando vi a legenda de uma foto tirada numa igreja na cidade francesa de Beauvais, na França, que dizia: “Este santo nos chamou atenção porque ele tem o corpo de uma mulher e muita barba”.
Beauvais. França. Imagem responsável por essa pesquisa.
Rapidamente fui ver a foto e quer saber o que aguçou a minha curiosidade? Primeiro: a Igreja Católica não permitiria que um santo, homem, fosse representado com o corpo de mulher. De ser assim como eles poderiam condenar os travestis como condenam? Segundo: como assim um santo crucificado? Não é apenas a imagem de Jesus que está na cruz? Com a pulga atrás da orelha examinei a foto, procurei saber o nome do tal santo e fui atrás de outras imagens para ver se isso era realmente possível. E sabem o que eu encontrei? Uma história super interessante que aconteceu durante a Idade Média, provavelmente em Portugal e que agora conto a vocês a história de Santa Wilgefortis. Também conhecida como Santa Librada.
Pas-de-Calais. França
A imagem em questão é de Saint Wilgefort e está na igreja de Saint-Etienne, em Beauvais, na França, bem próximo de Paris e não é um santo com um corpo feminino e barba. É uma santa barbada! Loucura não? A história dela aparece a partir do século XI e é rodeada de lendas a ponto de muitos considerá-la mais como uma lenda que história verdadeira já que são muitas as versões, mas mesmo estas têm alguns pontos em comum.
Alemanha
Esta moça era filha de um português (algumas versões dizem um rei em outras um nobre), nascida de um parto em que a mãe teve 9 filhas. O que já teria sido todo um acontecimento por si só. O pai a prometeu em casamento ao rei da Sicília, mas como ela não queria o casamento, queria manter sua virgindade (daí o nome que vem do latim virgo fortis: virgem forte) e sua devoção a Deus orou e Lhe pediu que a deixasse feia e repugnante para manter sua castidade. Ela parou de comer, tornou-se anoréxica e teve seu pedido atendido ao desenvolver pelo por todo o corpo de tal forma que inclusive passou a ostentar uma barba. O rei da Sicília ao vê-la desfez o acordo de casamento e com raiva e em repúdio a atitude da filha, o pai mandou crucificá-la o que provocou verdadeiro horror na cidade. Em outras versões ela foi decapitada. Por isso passou a ser cultuada como santa a partir do século XIV e é considerada a santa das mulheres mal casadas. Muitas rezam a ela pedindo para desfazer casamentos infelizes ou simplesmente para não se casarem.
Crucificação de S.Wilgefortis. Áustria
Só por isso a história já é interessante e o final mais ainda porque conhecemos apenas a imagem de Cristo crucificado e não de uma mulher. Isso porque apenas os homens sofriam o castigo da crucificação e por crimes como roubo e assassinatos. Ao aprofundar-me mais na história descobri que existem apenas três santas que foram crucificadas (Santa Wilgefortis, Santa Julia de Catargo - crucificada e jogada no rio ainda na cruz e Santa Comba – crucificada numa árvore), além de muitos outros pormenores interessantes como que seria um dos primeiros casos de anorexia nervosa registrado na história. Pois uma pessoa que tem anorexia grave e tem um alto grau de desnutrição pode apresentar um desequilíbrio hormonal que provoca o crescimento de pelo em todo o corpo.
Santa Julia de Catargo
Santa Comba

Ela não foi canonizada, tem relíquias numa igreja em Sigüenza, na Espanha e tem muitas imagens dela em Portugal, Espanha, Áustria, França, Alemanha e a igreja permite o seu culto, apesar de não considerá-la como santa porque não existe nenhuma prova real de sua existência. Até 1969 o dia da festa dela era 20 de Julho, mas foi retirada da lista de santos por ser considerada apenas um culto popular. Seu culto foi extremamente difundido entre os séculos XIV e XVIII por toda Europa Central e depois caiu no esquecimento. Seu culto foi muito forte nos países baixos, chegando posteriormente à França, Inglaterra, Alemanha, Suíça, Áustria, Rep. Tcheca e Polônia.
Praga
Seu culto decaiu no século XX com as grandes Guerras Mundiais, sendo que hoje é praticamente desconhecido em algumas das cidades que séculos atrás tanta a veneravam.
Alguns historiadores acreditam que ela nunca existiu e que na verdade, sua imagem foi uma má interpretação que alguns fizeram de uma relíquia muito conhecida na época que se chama Volto Santo de Lucca que confundia os fieis por levar Jesus crucificado com uma coroa e uma grande túnica, confundindo com um vestido. Há estudos mais recentes que discordam dessa tese, demonstrando que o culto sempre foi à santa e não a uma má interpretação de imagens.
Pintura em tecido. Alemanha.
Seu nome também poderia derivar do antigo alemão hilge Vartez, que significa rosto santo e na Inglaterra é conhecida pelo nome de Uncumber e o impresso com culto mais antigo que informa o culto a esta santa é de 1513, em Paris, encarregado pela diocese de Salisbury intitulado “De sancta Vigelforti, virgine et martyre” e sabe o que é mais interessante para terminar? É que essa santa também é conhecida aqui na América Latina. É muito venerada no Panamá, é a padroeira da Independência da Colômbia e tem imagens em igrejas de Lima e Quito também. Porém aqui ela é conhecida como Santa Librada ou Liberata.

Além das imagens das igrejas, existem poucas gravuras dela sendo a mais famosa uma que faz parte do Tríptico de Hans Memling, que a retrata, à esquerda a com coroa e barba e uma cruz que ela segura e está acompanhada por outra figura muito própria do gótico tardio, Santa Maria Egipcíaca. Essa obra é de 1480 e atualmente se encontra em Bruges, na Bélgica. Também vale ressaltar aqui que os historiadores que defendem a tese que ela é apenas um mito, uma confusão da imagem de Lucca, informam que Santa Wilgefortis e Santa Librada são santas diferentes e que alguns confundiram os nomes porque ambas estão crucificadas e que era muito rara a imagem de uma mulher e santa assim naqueles idos. 
Tríptico de Hans Memling. 1480. Bélgica
Depois de toda essa leitura e pesquisa que consegui fazer apenas utilizando a internet (pobre, eu sei) sei que há duas teses para a história dela e apesar de ler alguns artigos defendendo a confusão das imagens, como conhecedora e leitora assídua de estudos sobre a Idade Medieval e sua cultura e mentalidade, acho mais que plausível que o recorte de histórias que dá base ao mito possa ser verdade afinal os casamentos eram arranjados pelas famílias, muitas moças eram infelizes e preferiam morrer a se casar. Outras deveriam agarrar-se a sua fé e não aceitavam esses casamentos arranjados com homens mais velhos e de culturas consideradas pagãs. Também está o fato que os castigos eram públicos e apesar do ato cruel é possível sim que um pai tenha crucificado sua filha ao perder um grande acordo como castigo e também para mostrar que a Igreja Católica não tinha poder sobre as decisões que uma família quisesse tomar. Pois se os mais jovens já estavam doutrinados pela nova religião, o mesmo não acontecia aos mais velhos. E justamente por isso, houve um momento em que a Igreja difundiu mais algumas santas que outras exaltando a pureza,a fé e a devoção completa à ela.
Sem barba em Bogotá. Colômbia
Também parece um pouco de exagero essa história da confusão das imagens, afinal querer afirmar que toda uma cidade (a princípio) confundia a imagem de Jesus com uma mulher principalmente por causa da túnica numa época em que era comum os homens, e principalmente judeus, a usarem parece um pouco fora de propósito. Mas....bem, cada um defende sua tese, já que esse é o problema, o propósito e o grande prazer de estudar história: apenas poder montar uma colcha completa com os retalhos que vamos encontrando e torcer para conseguirmos dar uma forma ao que possivelmente aconteceu.

Espero que tenham gostado dessa curiosidade e aqui deixo algumas imagens e links sobre a Santa Barbada.



Saludos brasiporteños.

Comentários

  1. Nossa, muito interessante essa história.
    Obrigada por compartilhá-la conosco (com o público). :)
    Abraço!

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  2. Adorei seu texto e pesquisa. Visitei a imagem da Santa Liberata como ela é conhecida em Praga, no Convento do Loreto, e a guia me contou sobre a "lenda".

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  3. Muito interessante seu texto. Procurei algo a respeito após ler uma curiosidade a respeito no Facebook, minha curiosidade no entanto me levou ao seu texto que me levou a outras reflexões.obrigada.

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  4. Que interessante seu texto! Eu sou uma mulher barbada, a minha barba se deve a doença de cushing. Atualmente, estou desenvolvendo uma pesquisa com outras mulheres barbadas contemporâneas sobre práticas curatoriais e processo criativo, uma vez que minha pesquisa está sendo situado no campo da Arte e Cultura, mais especificamente na Gestão Cultural. Obrigada por compartilhar seu texto e suas fontes de pesquisa. Abraço! 🌻

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