O CACHECOL


Um dia uma mulher começou a fazer um cachecol com suas agulhas de tricô. Escolheu as cores e o desenho. Ficou dias trabalhando nele enquando pensava na vida, nos problemas que tinha que resolver, imaginando se alguém compraria aquele cachecol e se o usaria muito.
Ou nada tão idílico aconteceu e simplesmente uma mulher recebeu de seu chefe o modelo do cachecol, colocou na máquina o desenho e as linhas e somente controlava para que ficasse bem feito e em algumas horas vários cachecóis iguais passaram a outra máquina para serem dobrados, encaixotados e levados às lojas.
Alguma vez já parou para pensar na história de alguma roupa ou acessório que gosta ou que simplesmente está há muito tempo contigo? Geralmente lembramos de quando o/a compramos ou ganhamos. Mas e antes? Quem fez? Quem costurou? Quem escolheu as cores? Quem dobrou? Por quantas mãos passou antes de chegar até você? Será que pensaram que duraria muito? Que faria alguém feliz? Que chegaria a ser importante na vida de alguém?
La Plata em 2011 - Argentina
Em 2004, depois de passar dois anos estudando a língua espanhola, depois de ter conseguido o D.E.L.E. (certificado iternacional), era o momento de solidificar os conhecimentos e a Espanha era impensável para uma pessoa que passava 3h num transporte público para fazer 1h de curso gratuito. Porém, na América Latina, tirando o Brasil da equação, todos os demais falam a tal língua espanhola e a ideia de apenas cruzar a fronteira ganhou corpo e sem o dinheiro necessário para fazer uma viagem internacional como as que vemos em filmes, novelas e relatos de viagens nas revistas veio a ideia de fazer uma viagem no estilo mochilão. Para a época era algo muito louco para pensar e fazer, principalmente para uma mulher. Só existia um guia no Brasil para mochileiros e em português e um site deste mesmo guia onde as pessoas trocavam informações. Encontrei o guia em uma biblioteca e fiz várias xerox. Escolhi o destino: um pouquinho da Argentina e muito do Chile. Meio de transporte: ônibus. Dinheiro: travel cheque e um pouco de dólares, os quais vi e toquei pela primeira vez. Mês: Julho, o permitido pelas férias do trabalho. Duração: 1 mês. Estação: Inverno. Vixi!!!!
Comprar roupas e bota de inverno: Ok. Luvas: Ok. Gorro: Ok. Meias: já tinha. Cachecol: hummm, aqui a coisa complicou. Colorido ou neutro? Liso ou estampado? E no Brasil, exceto o sul que é frio, naqueles anos, não era ainda um acessório comum e da moda. E a maioria era só acessório mesmo, por isso era fácil encontrar echarpes, mas cachecol mesmo, de lã, era mais difícil e tinha que ser quente, afinal inverno na Argentina e no Chile era inverno de verdade.
Depois de tanto andar e decidir por um de cor neutra que pudesse ser usado com qualquer roupa e que não fosse preto. Nunca fui fã de cachecol preto! Lá estava ele: cinza e na ponta umas letras brancas dizia GOLF. Que coisa besta isso aí, mas lembro de também ter pensado: “Golf é coisa de gente chique. E uma viagem internacional de um mês é muito chique, mesmo sendo como mochileira. Vou levar esse mesmo”. Lembro-me perfeitamente que era o melhorzinho que encontrei.
Primeiro inverno na  Europa em 2014
Foi o único que comprei e que me acompanhou em toda a viagem. Na volta, ele foi direto para a gaveta e esquecido. Afinal quando é que eu usaria aquilo quente de novo? Ficou anos guardado. Por diversas vezes, nas arrumações, pensava em me livrar dele, no entanto vinha a lembraça de que tinha sido meu primeiro e único cachecol e ele voltava para a gaveta.
Até que em 2009 voltei à Argentina. Era outono e ele voltou a me acompanhar. Decidi morar naquele país e ele estava comigo, pois cheguei em pleno inverno. Com os anos, como tudo que num primeiro momento foi especial, ele ficou esquecido pois outros cachecóis vieram e ele ficou lá, um pouco abandonado. Muitas vezes me mudei e dava roupas, mas ele continuava comigo. Não tinha coragem de me livrar do meu primeiro cachecol. Do companheiro de vários outonos e invernos que aconteceram em minha vida e da única coisa que esteve comigo desde a primeira viagem internacional.
Primeiro dia no Museu Hermitage - Rússia

Estamos em 2020 e ele agora não está apenas em mais um inverno. Está num inverno lendário: o inverno russo. Trouxe para essa viagem somente dois cachecóis e em nenhum momento tive dúvidas que ele viria. 

Há 16 anos ele está comigo. Agora em fevereiro, quando comecei meu trabalho voluntário no também lendário Museu Hermitage, um dos maiores e melhores de nosso mundo, ele foi o escolhido para me acompanhar naquele dia, afinal a nossa jornada pelos invernos da vida é longa e sem planos próximos para terminar e tenho a impressão de que ele ainda terá muitos invernos e outonos pela frente.
E você? Tem alguma roupa ou acessório assim há tanto tempo contigo? 
Eu adoraria saber.

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