O CAVALEIRO DE BRONZE

Hoje é um daqueles meus dias preferidos: nublado e chuvoso. Chuva o dia inteiro. Perfeito para estar em casa vendo um filme ou lendo um livro enquanto escuto o barulho dela caindo lá fora e preparo uma grande xícara de chá. Você sabia que um dos meus sonhos sempre foi ter um jardim de inverno ou pelo menos uma sacada assim? Sempre invejei as salas de leitura das mansões inglesas. Toda de vidro, aquecida e com um confortável e amplo divã para estar durante minhas leituras e no entremeio levantar a vista e observar a chuva, o sol ou a neve lá fora numa total permissão para meios devaneios de leitora. Toda boa leitura nos traz devaneios, suspiros, risadas, cheiros, angústia, sofrimento, alegria, arrebatamento, luxúria, conhecimento, catarsis social, conversas imaginárias concordando ou discordando de discursos ou de teorias políticas, sociais, antropológicas ou de simples diálogos das personagens em questão.

A leitura nos faz fugir de nossa realidade e nos leva a mil realidades possíveis e diferentes (ou não). Quem nunca quis ser ou se apaixonou por um determinado personagem? Quem nunca quis caminhar por determinados lugares descritos? Quem nunca quis avisar a um personagem que não falasse nada ou que aquele era o momento perfeito para contar tudo? Quem nunca quis estar nos EUA antes da independência ou durante o discurso de Martin Luther King em Washington? Quem nunca quis se perder pelas ruas de Paris descritas nos livros? Quem nunca quis estar em Londres, Berlim, Moscou, Madri, Lisboa, Roma, Veneza, Cairo, Pequim, Tóquio, Buenos Aires, Rio de Janeiro? E essas são apenas algumas das cidades que permeiam a imaginação de muitos leitores mundo afora.

E, claro, você pode dizer: “Mas Ina, nem todos os livros são bons! Tem muito livro ruim!”

E eis-me aqui para dizer-vos (e neste momento sinto-me como Eça de Queiroz 😅): cuidado com as palavras! Contar-lhes-ei (sempre amei as mesóclises 😍) que todo livro é uma chave, um transporte, um portal. Um livro nada mais é que uma capa e contra-capa, recheado por um conjunto de páginas e palavras, que podem estar coladas, grampedas ou costuradas. Um livro nada mais é que um objeto e sem uma história, teoria, pesquisa, informação, ele é totalmente vazio e inocente de qualquer culpa. Não culpemos os livros, esses objetos de amor e culto e de perigo para muitas pessoas e governos. Um livro não é ruim, o seu conteúdo é que pode sê-lo.

Tem escritores que escrevem por escrever, outros têm o dom da escrita, outros para criar histórias, outros para ordená-las, outros para contá-las, outros são muito criativos, outros são metódicos, outros didáticos, outros melancólicos, outros febris...na verdade, um bom escritor ou escritora tem um pouco de tudo o que listei, ou seja, são poucos. Por isso existe a categoria dos Clássicos. Nela existem grandes histórias, grande domínio da escrita, grande escritores e escritoras. Alguns clássicos têm tudo isso, outros não. O que têm em comum é que são atemporais. Podem ser lidos em qualquer época ou século. Sempre haverá alguém que se sentirá identificado ou cada vez que relermos perceberemos detalhes que nos escaparam ou nunces que percebemos de maneira diferente.

De repente uma história que captou sua atenção totalmente parece tola e sem sentido a outra pessoa. Por isso é complicado dizer aos demais: “Não perca o seu tempo. Este livro é muito ruim!”. O mais honesto seria dizer: “Eu não gostei. Não me ‘pegou’. Depois de ler, diga-me o que achou. Se terá a mesma opinião que a minha”. 

Você já parou para pensar no poder que um livro pode ter? Que ele pode mudar o rumo dos acontecimentos? Que uma história pode decidir OS SEUS rumos? E que isso pode acontecer sem você se dar conta? Bem, aconteceu comigo. Estou na Rússia por causa de dois livros (ahh, e da ajudinha do coronavírus, não esqueçamos 😷).

Quando fiz os planos para a viagem deste ano a Rússia não estava neles. Depois pensei que se eu iria conhecer alguns países da ex-URSS por que não diretamente a ex-URSS? Afinal, quais as chances de voltar ao Leste Europeu depois desta viagem, ainda mais para ir somente à Rússia? Eram perguntas puramente baseadas na geografia da viagem.

Naquele interim comecei a ler o livro “O Jardim de Inverno” de Kristin Hannah. A primeira parte do livro é uma simples história de conflito que se passa nos EUA entre duas filhas e a mãe russa sempre distante. A segunda parte é uma história de Noites Brancas, de guerra, de dor, de fome, de desespero, de frio intenso e descrita de tal forma que me impactou. Reli o livro e o indiquei a várias pessoas. Comecei a ler mais sobre Leningrado e cheguei a outro romance, “O Cavaleiro de Bronze”, uma trilogia de Paullina Simons, que me fez virar noites e noites de leitura. A história de amor de Tatiana e Aleksander me dominou, absorveu o meu ar e trouxe Leningrado e a Rússia à minha vida.

E assim decidi que passaria 1 semana em Moscou e 2 semanas em Leningrado, atual São Petersburgo, que se tornou o foco da viagem. No entanto, o destino interveio e consegui um trabalho voluntário por 1 mês no Museu Hermitage e novamente veio o destino com a situação do coronavírus e bem, logo farei 5 meses na Rússia.

O Cavaleiro de Bronze é um dos monumentos mais importantes do país e o mais importante de S. Petersburgo. É a estátua do Czar, Pedro I, o Grande - responsável pela construção da cidade - construída pela Czarina, Catarina, a Grande e está olhando para a cidade, montado sobre um cavalo, pisando uma serpente. Ficou assim conhecido por causa de um dos mais célebres poemas de Aleksander Puchkin, o pai da língua e da literatura russa: “O Cavaleiro de Bronze”. No poema, Puchkin conta uma história que faz alusão a construção da cidade por Pedro I e como a estátua protege a cidade.

Reza a lenda que se a estátua for retirada, a cidade deixará de existir. Durante a II Guerra, quando todas as estátuas da cidade foram retiradas ou enterradas, o supersticioso povo russo decidiu que as coisas já estavam muito ruins 
para desafiar a lenda. Foi coberta com tapumes e madeira e o Cavaleiro de Bronze foi a única estátua deixada na cidade. E Leningrado não caiu. E no dia que a cidade recebeu a notícia do fim da guerra foi para que o povo se encontrou para festejar a vitória e a estátua recebeu o status total de veneração e agradecimento dos leningradenses tornando-se assim o maior símbolo da cidade. Sempre há flores ao redor dela e sempre há flores deixadas pela população sobre seu pedestal.

Quando a escritora Paullina Simons escolheu o título de seu livro, muitos familiares, ela é russa, foram contra e sugeriram que mudasse o título. Porém, ela se manteve firme pois sabia não estar maculando um símbolo tão importante para os leningradenses, afinal a história de amor de Tatiana e Aleksander é a história de Leningrado, da Rússia e do povo soviético.

A história começa no dia 22 de junho de 1941, dia em que a URSS declara guerra à Alemanha e termina no final da década de 1980. São 40 anos de história. O primeiro volume acontece em Leningrado, antes e durante o Cerco. O segundo, nos Montes Urais e em Leningrado até o Cerco ter sido rompido pelos soviéticos. O terceiro é divido em duas partes: na primeira, acompanhamos a história do ponto de vista de Aleksander e a segunda parte o pós-guerra nos EUA.

Tatiana é a personificação do país, da Mãe Rússia. A Rússia tem o título de mãe para os russos. (O Partido Comunista era o pai e antes dele o Czar). Além da história de amor e de guerra, o mais impressionante, conforme o livro avança, é conhecer a vida comum, a vida durante a guerra, os costumes, a cultura e os pensamentos soviéticos. À princípio, para nós leitores ocidentais, a história até parece um pouco boba e ingênua no início ou em alguns comportamentos, mas aqui era assim - ainda o é em grande proporção. E ainda mais impressionante, conforme descobri após muita leitura sobre a II Guerra no Leste Europeu e as batalhas na Rússia, (e não estou falando de wikipedia e sim de livros de historiadores, depoimentos orais, relatos e diários de guerra, etc), é que absolutamente tudo o que a autora escreveu aconteceu. Até detalhes mínimos que parecem estar na história para aumentar o suspense ou acrescentar detalhes aos acontecimentos ou personagens aconteceram de verdade.

Eu reli a trilogia mais de uma vez e a releitura feita após me aprofundar na história da URSS foi alucinante. Essa é a palavra! Foi alucinante reconhecer nos diálogos que tudo aquilo realmente aconteceu com alguém e que estava ali representado ou mencionado num diálogo ficcional. O livro é um romance de ficção, mas acho que a autora poderia ter escrito uma nota ao final do livro informando que fez uma pesquisa historiográfica e pessoal (que foi absurdamente profunda) para que os que leram ou lerão a trilogia saibam que o que está ali é, eu diria, 80% verídico. Os 20% restante deixo por conta da história de amor em si. Mas tudo ao redor da história e grande parte do conteúdo dos diálogos costurados numa grande colcha de retalhos, aconteceu ao povo russo.

Quando cheguei à cidade, deixei minhas coisas e fui direto ao principal endereço onde a história se passa no primeiro volume: a casa da personagem Tatiana na 5a Soviética com a Avenida Grenchestky. Reconheci a esquina, o hospital, as avenidas, os lugares por onde os personagens caminhavam. Foi a minha primeira viagem com um livro inteiro de fundo. Até hoje ainda me surpreendo quando passo por alguma rua, edifício, parque ou estátua e os reconheço do livro: “Eles caminharam por aqui”; "Foi aqui que àquela bomba explodiu”; "Aqui ficava o mercado onde ela conseguia comida”; “Foi nesta entrada que encontraram o diretor do Hermitage”; "Aqui foram plantados repolhos e batatas na primavera”; “Nesta rua muitos mortos foram deixados congelados”; “Que escada íngreme! Como é difícil imaginar as pessoas subindo com os degraus cheios de gelo e escorregadios”. Da 5a Soviética fui ao Museu do Cerco e foi interessante para perceber que do mapa de Leningrado que está no livro ele não fazia parte. O mapa de Leningrado tinha miséria, frio, fome, prostituição, crimes e vagabundagem, mas não tinha a desesperadora fome do cerco de 1941 e 42 provocada pelos nazistas. O Museu do Cerco está no mapa de S. Petersburgo. Ele e os memoriais de guerra são as grandes diferenças entre os mapas da cidade de antes e de depois da guerra. E em ambos o Cavaleiro de Bronze continua em destaque e imponente, mantendo a cidade em segurança.

Muitas são as vezes que sem me dar conta meus pés me levam ao Cavaleiro de Bronze. E tudo por conta de um livro ou dois, cinco...

OBS: eu tenho os livros em pdf se alguém tiver interesse.

Comentários

  1. Demorei pra ler porque queria viajar na leitura como eu fiz agora, obrigada por essa viagem amiga no livro é na Rússia. Parabéns!!

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